Vivemos sob uma nova tirania e, curiosamente, uma que sorri. Já não basta trabalhar, produzir, cumprir prazos ou ser competente. É imperativo ser feliz. Radiante. Grato. De preferência às segundas-feiras de manhã.

Esta imposição de “positividade” não é só inócua: distorce prioridades organizacionais, empurra problemas estruturais para debaixo do tapete e, em última análise, sai caro - em pessoas, em produtividade e em reputação.

A OMS estima que a ansiedade e a depressão, sozinhas, retirem à economia mundial cerca de 12 mil milhões de dias de trabalho por ano, com um custo anual próximo de 1 bilião de dólares em perda de produtividade.  

Algumas empresas, por vezes as mesmas que celebram líderes tóxicos em reuniões de direção, ostentam agora com orgulho departamentos de “felicidade organizacional”, organizam sessões de team building com insufláveis e pintam paredes com palavras como resiliência, empatia, bem-estar. Há, inclusive, prémios. Certificações. Selos dourados que garantem que ali, naquela empresa, ser feliz é obrigatório. Entre o marketing e a prática vai, porém, um fosso: a literatura internacional é clara ao listar os riscos psicossociais que adoecem equipas (sobrecarga, baixo controlo, insegurança no emprego, assédio, horários longos), e as recomendações são sobretudo organizacionais - desenho do trabalho, formação de líderes, políticas anti-assédio, programas de regresso ao trabalho - não “atividades giras”.  

✔️ Felicidade? Check.

✔️ Saúde mental? Temos (num slide em PowerPoint).

Mas o burnout continua a subir, a ansiedade alastra-se, e as ausências prolongadas por motivos psicológicos tornaram-se a pandemia invisível dos recursos humanos. Convém recordar: a OMS incluiu o burnout no CID-11 como “fenómeno ocupacional”, não um diagnóstico clínico, resultante de stress crónico no trabalho que não foi bem gerido. É um problema de organização do trabalho, não de “fragilidade individual”.  

É curioso (e preocupante) observar como a saúde mental foi transformada numa buzzword, tão sexy quanto volátil. Serve para campanhas de marketing, posts de LinkedIn e para justificar mais um painel num qualquer congresso de RH, onde se fala muito sobre as pessoas, mas pouco com elas. Entretanto, os investidores começam a olhar para a gestão de saúde mental como indicador de risco e de governação: benchmarks globais mostram que a maioria das grandes empresas ainda reporta e gere aquém do expectável nesta matéria, com impactos diretos em absentismo, rotatividade e atração de talento.  

Nem tudo é fachada. Há empresas — e, felizmente, cada vez mais — que tratam a saúde mental com a profundidade que merece. Que percebem que não se trata de “manter a equipa motivada”, mas de não deixar que ela adoeça. Que não se contentam com mindfulness às quartas e fruta grátis no lounge. A boa notícia é que existem orientações robustas e baseadas em evidência: a OMS recomenda intervenções ao nível do desenho do trabalho (reduzir sobrecarga, aumentar autonomia), formação de gestores para reconhecer e agir perante sofrimento emocional, literacia em saúde mental para as equipas, e programas estruturados de regresso ao trabalho — soluções com efeito mensurável em bem-estar e desempenho.  

Mas, infelizmente, ainda são muitas as que pintam uma fachada bonita enquanto perpetuam culturas laborais doentes, metas desumanas e lideranças que confundem assédio com exigência. Os números em Portugal pedem urgência: em 2019, cerca de 2,25 milhões de pessoas (22% da população) viviam com uma perturbação de saúde mental - acima da média europeia - e os custos totais associados à saúde mental foram estimados em ~3,7% do PIB (com mais de 40% atribuídos à perda de produtividade). Em termos de anos de vida produtiva, isso traduziu-se na perda de quase 310 mil anos num só ano.  

Na MindPartner e no NeuroGime, temos por vezes conversas com empresas onde os sinais de alerta são claros: equipas esgotadas, lideranças desorientadas, um clima organizacional tudo menos feliz. E, ainda assim, a solução escolhida acaba por ser… um workshop. Um. Não por má vontade, mas por uma compreensão incompleta do problema. Se os riscos são estruturais, a resposta tem de ser estrutural: políticas claras de carga de trabalho e de horários, revisão de objetivos e métricas, mecanismos de participação dos colaboradores, canais seguros para queixas e investigação de assédio, formação de chefias intermédias e acesso rápido a cuidados. É isto que as diretrizes internacionais têm insistido em sublinhar.  

Desafio as empresas a olharem mais para os seus indicadores de rotatividade, para as baixas médicas, para os silêncios nos corredores. Porque esses são os verdadeiros KPIs da saúde mental - não o número de brunches motivacionais ou um tapete de yoga no open space. Em Portugal, os serviços especializados enfrentam listas de espera e escassez de profissionais, o que significa que as organizações devem prevenir a montante: reduzir riscos psicossociais dentro de casa é, muitas vezes, o fator decisivo entre perder talento por exaustão ou mantê-lo saudável e produtivo.  

A saúde mental não se resolve com um workshop de 90 minutos e um tapete de yoga no open space. Exige uma revisão profunda de valores, de práticas, de relações de poder. Implica colocar o tema no centro da gestão - com orçamento, metas e prestação de contas - e alinhar políticas de RH, operações e segurança e saúde no trabalho. A OMS é explícita: prevenir riscos psicossociais, proteger e promover a saúde mental e apoiar trabalhadores com perturbações para que participem e prosperem no trabalho. Isto traduz-se em decisões concretas, ajustar cargas, dar autonomia, treinar chefias, criar programas de regresso ao trabalho, e não em slogans.  

Requer coragem - e essa, ao contrário da positividade tóxica, não se treina em team building.