O que são as dependências?

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a dependência define-se como “um estado de necessidade física e/ou psíquica de uma ou mais drogas, resultante do seu uso contínuo ou periódico”.

Falamos aí de dependências a produtos ditos psicotrópicos ou psicoativos (como queiram chamar), que alteram pela sua natureza, o funcionamento do nosso sistema nervoso central, quando em interação com este último. Estas substâncias alteram a nossa perceção do mundo (dos outros, do nosso ambiente, de nós próprios) assim como alteram outros processos mentais e emocionais e, por consequência alteram a “relação” que vamos estabelecer com o mundo à nossa volta, assim como com o nosso mundo interno.

Mas antes de falarmos de dependência, convém contextualizar e referir então, que segundo a especialidade de avaliação e intervenção em comportamentos aditivos, o consumo de produtos psicoativos divide-se usualmente em algumas categorias, ou segundo um contínuo de vários tipos de consumo (segundo as preferências):

Fala-se de um primeiro nível denominado de abstinência, que se refere à ausência de consumo de um determinado produto (substância ou comportamento), sendo uma abstinência de condição ou, no caso da abstinência resultar de uma intervenção terapêutica, uma “abstinência terapêutica”.

Fala-se a seguir do conceito de uso, que se caracteriza pelo consumo de um determinado produto, de forma esporádica, sem que qualquer problema advenha associado a este consumo, sendo que se considera a ausência de problema, o facto de nenhuma área da vida da pessoa ser afetada significativamente pelo consumo (pessoal, social, profissional, saúde).

Existe o abuso, que se caracteriza então por um consumo significativo e mais regular, com a presença de problemas associados a este consumo, que se apresentam em determinadas áreas da vida do consumidor, e com uma eventual alteração do insight relativamente à existência de um problema associado ao dito consumo.

E finalmente, existe a dependência já referida, esta que se caracteriza pelo consumo repetido e frequente, mas acima de tudo pela presença de uma síndrome de abstinência, de um défice ao nível do controlo de impulsos (em relação ao consumo), do fenómeno de craving (ligado à dependência psicológica), e do comportamento de procura do produto que absorve grande parte do tempo em detrimento de outras atividades importantes para a vida da pessoa. Existe neste ponto um conjunto de problemas significativos associados ao consumo, que afetam várias áreas da vida da pessoa (social, profissional e pessoal e saúde).

Mas mais adiante na reflexão, e quando falamos de dependência, falamos também de diferentes tipos de dependência:

O consumo repetido de determinados produtos, e isto inclui substâncias e comportamentos, pode no tempo evoluir para um estado de dependência que se pode classificar em física e/ou psicológica, e dentro destas últimas, em funcional e/ou emocional.

A dependência física, bem conhecida de todos, manifesta se por sinais físicos provocados (alterações bioquímicas e comportamentais importantes) pela ausência ou abstinência de consumo do produto em questão, que é naquele momento necessário absorver ou ingerir para extinguir ou fazer desaparecer estes sintomas de um lado, e de outro lado para manter o equilíbrio ou homeostase do organismo, sendo que o produto, neste estado de dependência física, pode já ser considerado como fazendo “parte” do funcionamento “normal” do organismo naquele momento (mesmo que provocando danos como são as cirroses no caso da dependência ao álcool por exemplo).

A dependência psicológica, está associada a certas substâncias como podem ser a cannabis e a cocaína por exemplo, mas referente também a determinados comportamentos, quando pensamos no jogo patológico por exemplo. Neste tipo de dependência não existe o mesmo mecanismo bioquímico que acompanha a dependência física, mas existe um fenómeno de condicionamento do comportamento com o seu correlato no funcionamento bioquímico (aumento da libertação de glutamato), em que certos desempenhos, em termos do que são a capacidade de sentir e regular determinadas emoções, ou a capacidade de solicitar certas funções cognitivas a um certo nível, ou ainda mesmo a capacidade de exibir certos comportamentos sociais, depende da ingestão de certos produtos (ou da apresentação de certos comportamentos ou estímulos). Falamos então de dependências que são psicológicas…. O problema nesta circunstância (além de outros), é a chamada “descida” depois do efeito do produto passar ( “boomerang emocional”), que muitas das vezes acompanha este tipo de dependências, esta descida se caracterizando por uma irritabilidade nos casos mais leves, até a depressão e a ansiedade, e até ao suicídio nos casos mais extremos.

De referir por último que uma dependência física é geralmente acompanhada de uma dependência psicológica, sendo esta dependência psicológica muitas das vezes responsável pelas recaídas, após um tratamento de desintoxicação.

O Cérebro

O nosso cérebro é uma ferramenta muito hábil, entre muitas outras coisas, a descodificar e captar o nosso ambiente. O nosso cérebro é capaz de organizar o nosso ambiente e dar-lhe sentido, encontrando padrões que o tornam mais previsível aos nossos olhos, sabendo também teorizar sobre as possibilidades que este ambiente oferece e assim imaginar “um mundo possível”, projetando assim determinadas ações físicas desenhadas para o alterar no seu desenho original (quando pensamos nas infraestruturas das nossas civilizações), mas também capaz de o transformar na sua representação se necessário.

Esta última capacidade ou habilidade do nosso cérebro em “cortar e copiar” e “rearranjar” o mundo ou o ambiente é útil, porque se pensamos numa parte do mundo, ou mesmo numa situação sobre a qual não podemos agir ou mudar, resta nos alterar “os seus dados de registo”, nos permitindo assim “escrever” uma história diferente, mais útil, mais aceitável, mais suportável ou até mais lisonjeira.

O nosso cérebro ajusta-se ao mundo e ajusta este mundo em função da necessidade que se apresenta num dado momento.

Outra particularidade do nosso cérebro é que ele detesta o vazio, detesta a ausência de informação, preenchendo assim o melhor possível estes “espaços em branco” quando estes se apresentam, fazendo isto em coerência ou em função do que se teme, do que se deseja, e principalmente em função do que se precisa.

Esta é a sua função, o seu papel, o de encontrar uma solução para o insolúvel, para o impossível, tendo sempre algo para oferecer, mesmo que uma solução de recurso que possa não durar, mas sempre fiel à sua função e à sua responsabilidade, representa uma luz que brilha no escuro, mesmo que só um pouco, para assegurar mais um amanhecer, um minuto a mais, para ganhar tempo, até chegar à solução perfeita. O cérebro, e se devia resumir as suas inúmeras habilidades, conta-nos histórias e constrói narrativas sobre tudo o que nos rodeia e nos importa para a nossa vida.

A Narrativa

A humanidade sempre se contou, de diversas maneiras, a partir do momento em que adquiriu a capacidade da linguagem. Encontrou nesta capacidade uma maneira de organizar o tempo, em toda a sua dimensão, viajando através das histórias e da oralidade, para o passado, mas também para o futuro, saindo do presente por uns momentos, para que esse seja melhor explicado. A narrativa, a história, permitiu e permite organizar o nosso ser num todo coerente, nesta linha do tempo, conservando os traços deste nosso ser, dando lhes uma lógica e uma explicação, permite assim definir quem somos e como somos, para que nos possamos contar melhor aos outros, no mundo e no tempo, guardando todas estas experiências como se de uma fita se tratasse, para transmitir esta história aos outros, para que depois estes outros possam começar a sua própria história (a história de que vem a seguir).

No contexto da psicoterapia, ouvimos (e às vezes contamos) histórias: Ouvimos as histórias de quem nos vem ver, falamos e perguntamos sobre esta história e convidamos a viajar nesta linha do tempo da narrativa, para trás e para a frente, revisitando lugares e tempos já conhecidos, ou pelo menos que se pensava conhecer, reconstruímos, adaptamos, “reinterpretamos”, revivemos, curamos, juntos, na viagem mais assombrosa e fantástica que o estar vivo proporciona: o caminho de cada um (e como este caminho é contado).

Quando alguém vai consultar um psicólogo, para falar de um problema relacionado com o consumo de um determinado produto, apressamo-nos a o definir, etiquetar e medir este consumo, para assim perceber como se move, como muda e se adapta, em suma como funciona na sua “mecânica”. Esta atividade é imprescindível porque permite assim percebê-lo e prevê-lo mas, vem sempre a seguir o tempo da psicoterapia, onde se fala não só do produto ou do seu consumo, mas se fala principalmente da pessoa, do seu percurso e de como se juntou o produto a este percurso, e como continuaram a caminhar juntos até este momento.

A atividade narrativa é a forma como nós “contamos” e “recontamos”, segundo o que precisamos, é o que nos permite perceber como chegámos aqui e agora, a este ponto no tempo, mas também como podemos chegar onde queremos chegar a seguir. A história de cada um (a sua narrativa, ou seja, como se conta ele ou ela) é um legado precioso para os outros que a queiram ouvir, mas é também a melhor maneira de se conhecer a si próprio, de conhecer os segredos que esta narrativa pode conter, sendo que com ela nos podemos reinventar, perdoar, e consolar este “eu de antes”.

O produto, pode ter caminhado connosco uns tempos, quando precisámos dele, aparecendo para resolver um problema sem solução na altura, para talvez mesmo nos salvar a vida naquela circunstância, mas com o tempo, esta amizade degradou-se e transformou-se, e assim este querido amigo, perdeu o seu encanto, o seu poder “mágico” de resolver todos os males. Tornou-se hoje um problema, inflige sofrimento, e afasta quem se ama e preza…. Esta é uma encruzilhada, onde a pergunta que se coloca é, “será o momento da separação?” e se sim, como faço agora para preencher este vazio que o produto deixa. É uma pergunta importante e que aparece muitas das vezes a um determinado momento do processo psicoterapêutico, convidando assim a encontrar a resposta, a resposta que irá permitir uma transição para uma nova fase da construção da narrativa de cada um.