Interessei-me muito cedo pelas neurociências e neuropsicologia em geral e pela área das demências em particular. E logo percebi a importância do diagnóstico e intervenção precoces. A intervenção precoce é, na verdade, uma janela de oportunidade que só é possível com o diagnóstico precoce. E o que permite o diagnóstico precoce? Uma intervenção precoce, que deve ser vista como uma informação antecipatória e de apoio providenciado nos estágios iniciais da demência. Infelizmente, nem todos os pacientes (e/ou os seus familiares) procuram ajuda nas fases iniciais do quadro e apenas quando já é difícil implementar estratégias que tornariam todo o caminho mais fácil. É sobre isso que vos falo hoje neste artigo: sobre a importância de diagnosticar cedo, para intervir cedo.

Jornada da Pessoa com Demência

O caminho da pessoa com demência é sempre diferente, não existindo caminhos lineares. No entanto, podemos dizer que existem quatro estágios principais neste percurso, nomeadamente:

1. Consciência: A ideia de que somos apenas um no meio de tantos. Este é o estágio em que a maioria de nós permanecerá. Estamos cientes de que a demência existe e muitas vezes está próxima de nós — num avô, num pai, num amigo, num conhecido.

2. Identificação: É neste estágio que o indivíduo e os seus cuidadores se tornam conscientes de que existe um problema com a memória ou outros aspetos da cognição ou funcionalidade, e procuram ajuda. Usualmente é neste estágio que é feito o diagnóstico e iniciada a intervenção.

3. Viver (bem) com demência: Neste estágio, a demência já foi diagnosticada e as pessoas e os seus cuidadores têm à sua disposição o apoio necessário para viverem com ela e enfrentarem os desafios que esta traz.

4. Fim de vida: A demência deve ser considerada uma doença terminal, pelo que é importante que seja prestado o apoio necessário, por vezes paliativo, com o aproximar do fim desta jornada.


Impacto do Diagnóstico

A demência é uma condição que altera profundamente a vida do próprio e dos outros. Se por um lado é um diagnóstico experienciado com choque, com sentimentos de descrença, raiva ou negação, também é verdade que outras vezes pode ser encarada com algum alívio porque confirma suspeitas e permite encontrar explicações para os sintomas e sinais evidentes. No entanto, para a generalidade das pessoas o diagnóstico de demência pode ser visto como um processo de luto, que poderá incluir alguns ou todos dos seguintes estágios: choque, negação, frustração/raiva, depressão e aceitação.

O diagnóstico é feito demasiado tarde. Porquê?

Existe um problema grave de subdiagnóstico na demência. A verdade é que a maioria das pessoas com demência atualmente não receberam um diagnóstico formal. Nos países industrializados, apenas de 20–50% dos casos com demência são reconhecidos e documentados nos cuidados primários. Então nos países menos desenvolvidos os números ainda são mais dramáticos: um estudo realizado na Índia sugere que 90% dos casos estão por identificar. Se extrapolarmos estes resultados podemos dizer que aproximadamente 28 milhões dos 36 milhões de pessoas com demência não receberam o diagnóstico, e por isso não podem aceder ao tratamento e cuidados necessários.

E porque é que isto acontece? Parece existir uma relativização por causa da idade, que começa muitas vezes na família (“já a mãe dela era assim…”). A facilidade com que recorremos a expressões como “é da idade” remete-nos para o facto de ainda enfrentamos elevados níveis de ageísmo atualmente, um conceito que se refere a atitudes discriminatórias contra indivíduos ou grupos etários com base em estereótipos associados a pessoas mais velhas. Dados de um estudo recente revelam que cerca de

17% das pessoas com mais de 50% enfrentam ageísmo nos consultórios médicos.

Diagnóstico precoce — porque assume uma importância crucial?

Aqui seguem 10 razões que fazem do diagnóstico precoce uma ferramenta que se traduz em benefícios concretos para a pessoa com demência mas também para os seus familiares e cuidadores.

Razão nº 1: Planeamento de Intervenções Farmacológicas

Apesar de não existir cura para a maioria das síndromes demenciais, o tratamento farmacológico é usualmente mais eficaz quando realizado precocemente. Assim, o diagnóstico precoce permite o acesso a medicamentos que possam melhorar a cognição e qualidade de vida.

Razão nº 2: Planeamento de Intervenções Não Farmacológicas

Também as intervenções não farmacológicas, como a estimulação cognitiva, a fisioterapia, a terapia da fala ou a terapia ocupacional, podem ajudar a manter uma maior autonomia, funcionalidade e qualidade de vida durante um período mais alargado.

Razão nº 3: Psicoeducação

Quando sabemos o que temos, podemos aprender sobre isso. Por vezes só precisamos de perceber as coisas. O desconhecido gera-nos muita ansiedade. Assim, um diagnóstico permite um alívio imediato por aumento do entendimento que deve ser feito através de um profissional qualificado e não através do Dr. Google. Isto permite-nos, assim, validar preocupações e obter orientação para perceber a origem e natureza dos sintomas.

Razão nº 4: Melhor compreensão da problemática

No início da progressão da doença, é possível compreender a história de vida de forma ampla, quando o doente ainda é capaz de esclarecer dúvidas, informar acerca das suas preocupações ou manifestar desejos específicos que permitem a estruturação de uma intervenção mais personalizada e ajustada à pessoa. Por isso, compreenderemos muito melhor a história clínica e de vida daquela pessoa se o diagnóstico for feito quando ela ainda é capaz de a explicar.

Razão nº 5: Planeamento do presente e do futuro

Associada então à questão anterior, isto permite a possibilidade do próprio de planear — enquanto ainda tem livre-arbítrio, podendo escolher os caminhos dos seus cuidados futuros. Um diagnóstico precoce pode ser facilitador das tomadas de decisão porque permite que a pessoa participe ativamente no seu processo de planeamento financeiro, jurídico e de cuidados médicos a longo prazo, tornando assim conhecidos os seus desejos aos membros da família.

Razão nº 6: Concretização de sonhos, projetos e desejos

Pode permitir uma priorização das decisões de vida e potenciar decisões positivas, como a realização de projetos, concretização de desejos ou a partilha das memórias. Se o paciente queria muito fazer uma viagem que nunca fez e lhe foi diagnosticada uma demência, mas ainda está numa fase inicial, então está na hora de comprarem os bilhetes de avião.

Razão nº 7: Adequação dos tempos livres

Permite adequar o tempo livre, por exemplo, com a inclusão de atividades que poderão estimular capacidades cognitivas como a memória, atenção ou velocidade de processamento.

Razão nº 8: Participação em ensaios clínicos

É possível participar de uma forma consentida em estudos de investigação científica. Por vezes, as pessoas diagnosticadas precocemente podem ser convidadas a participar em ensaios clínicos, com novos fármacos, ou apoiar outros estudos tendo em vista a melhoria dos cuidados prestados.

Razão nº 9: Redução dos riscos

Um diagnóstico precoce permite uma otimização de estímulos e ações. Iniciar atividades mentais, iniciar caminhadas, continuar ou não a conduzir, continuar ou não a usar o fogão, controlo de decisões sobre finanças, segurança em casa, avaliação da possibilidade de fuga, são algumas das possibilidades que o diagnóstico precoce permite.

Razão nº 10: Ajuda dos familiares e cuidadores

A última razão, mas uma das mais importantes: um diagnóstico precoce ajuda as famílias. Um diagnóstico mais precoce permite que os familiares possam aprender mais sobre a doença, desenvolvam expectativas realistas e planos conjuntos para o futuro, o que se pode traduzir numa diminuição da ansiedade, de atitudes negativas e de sentimentos tardios de arrependimento. O diagnóstico permite à família conseguir assimilar este novo desafio, que como vimos por vezes é um processo de luto, e organizar-se para o futuro. Assim, um diagnóstico precoce dá-nos tempo: mais tempo para valorizar o presente e mais tempo para preparar o futuro.

Em direção a um diagnóstico precoce

Estratégia nº 1 — Tirar a demência da sombra: Para que o diagnóstico precoce seja cada vez mais possível, é necessário tirar a demência da sombra e aumentar o conhecimento geral sobre ela para que se possam identificar os sintomas (em nós e nos outros), precocemente.

Estratégia nº 2 — Recorrer à avaliação neurológica e neuropsicológica: Por vezes é difícil distinguir entre as alterações nas funções cognitivas caraterísticas do normal envelhecimento e os sintomas de uma demência, sobretudo em fases iniciais. Assim, uma avaliação por neurologia e/ou neuropsicologia permitirá ajudar no estabelecimento do diagnóstico.

Estratégia nº 3 — Aumentar o conhecimento e acessibilidade nos serviços: É importante aumentar a quantidade e qualidade dos programas de educação nos cuidados primários, que infelizmente ainda são escassos. Além do mais, é importante a introdução de serviços acessíveis de diagnóstico. Os governos têm de gastar para salvar.

Estratégia nº 4 — Aumentar o conhecimento e acessibilidade nos serviços: Tal como fazemos checkups regulares ou análises de dois em dois anos, seria importante que a partir dos 65 anos, e sobretudo quando existe historial familiar, fossem realizados rastreios para monitorizar o funcionamento cognitivo, emocional e comportamental.