Estamos desconectados do nosso corpo, em vários sentidos.

Ignoramos as necessidades que ele nos vai comunicando, reprimimos emoções, exigimos-lhe uma determinada postura em frente aos outros, e colocamos o bem-parecer à frente do bem-estar.
Por querermos projetar uma imagem que seja aprazível aos olhos do outro, encolhemos certas partes nossas e encobrimos outras. Queremos tanto ser vistos, ao mesmo tempo que queremos tanto esconder-nos.
É como se o nosso corpo nunca estivesse “pronto” para aparecer como ele é, para ser visto como ele é ou para ser tocado como ele é. E vamo-nos enchendo de certezas de que “não estamos prontos para ser amados” porque existe, algures, uma versão nossa mais trabalhada, com menos defeitos e essa sim, merecerá ser vista e aprovada pelos outros.

Há uma intolerância às imperfeições, aos sinais de desgaste e aos sinais de envelhecimento. Queremos que o nosso corpo aguente longas horas de trabalho sem apresentar sintomas de cansaço ou falta de concentração. Exigimos que aguente uma rotina que não é saudável, sem apresentar sinais de doença. Queremos livrar-nos do acne, das manchas, das olheiras, do nariz grande, das orelhas compridas, das pernas (que são demasiado largas, que são demasiado finas), da celulite. Queremos que seja mais musculado, mais magro, menos magro, mais definido, mais estreito, mais largo, menos largo. Porque somos sempre pouco.
E por isso sujeitámo-lo. Seja a uma alimentação restritiva, a exercício físico intensivo, a procedimentos estéticos contínuos, a uma monitorização constante do peso, a críticas e reparos ou a roupas apertadas e a sapatos que magoam. A facilidade com que endireitamos a postura, quando tudo o que mais nos apetece é deixar cair, largar a tensão ou até entregarmo-nos à preguiça, é, por vezes, desumana.

E no meio de tudo isto, queremos ter uma melhor autoestima.

  • Como podemos construir uma boa autoestima, quando estamos constantemente a compararmo-nos a uma versão nossa tão perfeita?
  • Como queremos ser confiantes, quando ignoramos continuamente as necessidades que o nosso corpo comunica?
  • Como podemos sentir-nos amados, quando escondemos partes nossas ao outro?
  • Como podemos ter relações satisfatórias e genuínas, quando estamos a procurar amor e validação na imagem e em qualidades físicas? E se assim for, que tipo de relações estamos a construir?

Não é que exista um problema com procurarmos melhorar o nosso corpo, principalmente quando essa mudança é acompanhada por uma postura de cuidado e compaixão para connosco. Qualquer processo de mudança é válido, seja através de procedimentos estéticos, seja através de uma mudança no estilo de vida. A forma como o fazemos não importa muito, importa antes a intenção que temos ao fazê-lo.
Todos sabemos os benefícios de termos uma alimentação saudável e fazermos desporto, por exemplo. Mas em muitos casos, estas escolhas que deveriam ser de autocuidado, passam a ser de controlo.
Há uma grande diferença entre fazer exercício físico (ou qualquer procedimento) com o propósito de cuidarmos melhor da nossa saúde e autoestima, ou fazê-lo como uma exigência (às vezes quase punição). Aqui, o propósito do bem-estar é trocado pelo propósito de se ter um corpo diferente do que se tem, e geralmente, este último é acompanhado de uma voz autocrítica e exigente.

Não são raras as vezes que em terapia ouço pessoas a falarem com desprezo sobre o seu corpo.

É a pessoa que evita ir ao rio refrescar-se num dia de verão porque sente que toda a gente julgará o seu corpo quando se levantar da toalha. Ou que evita sentar-se a jogar às cartas com os amigos, porque teme que as “pregas” da barriga se evidenciem;
É a pessoa que não quer aparecer em fotografias e se esconde delas quando os amigos estão a tirar. Ou que, na impossibilidade de as evitar, revê várias vezes as fotografias em que apareceu, criticando cada defeito do seu corpo;
É a pessoa que restringe o que come e que acaba por, mais tarde, comer em maiores quantidades do que o que queria, criticando-se por isso e voltando a restringir a comida no dia seguinte;
É a pessoa que quando sente tristeza e o corpo sinaliza a vontade de chorar, se recusa a fazê-lo, porque isso seria “uma fraqueza” e uma vergonha;
É a pessoa que não se sente confortável no ginásio porque se sente exposta e se compara a outras com mais experiência ou “com corpos mais trabalhados”;
É a pessoa que deixou de se olhar ao espelho ou, quando o faz, fá-lo em lágrimas.

Falamos de experiências de vergonha, do medo de se ser exposto e julgado pelos outros (vivências com as quais, de uma maneira ou de outra, em maior ou menor grau, todos nós nos identificamos). Falamos, também, de pessoas únicas, com tanto potencial e repletas de qualidades mas que, infelizmente, não as conseguem constatar. A perceção que têm de que são inferiores, leva a um discurso interno de autocrítica e desprezo que reforça cada vez mais esta ideia de inadequação. “Sou tão gordo/a”, “sou tão magro/a”, “a minha cara é feia”, “não tenho qualidade nenhuma” — percebem o peso que, dia após dia, estas palavras vão tendo? É uma guerra declarada contra o corpo onde habitam.
E por isso, defendem-se ao “esconder-se” do outro, ao compensar com estratégias de controlo ou ao privar-se de experiências potencialmente reparadoras de amor e carinho.

Mas estas não são as únicas formas de maltratarmos o nosso corpo…

Também o desprezamos quando ignoramos as necessidades que ele nos comunica, quando não damos espaço às nossas emoções ou quando ultrapassamos os seus limites. Quantas vezes, por exemplo, normalizamos o cansaço, quando ele é um sinal de que precisamos de abrandar?
É através do nosso corpo que experienciamos prazer e dor, e é através dele que as nossas emoções se manifestam. E haverá melhor guia para nos compreendermos do que os sinais que o nosso corpo nos comunica?Passamos muito tempo no mundo cognitivo — a planear, a resolver, a ruminar — em detrimento do mundo dos sentidos. Esquecemo-nos, muitas vezes, que o verdadeiro autoconhecimento vem desta conexão com o nosso corpo e com as necessidades que ele nos vai transmitindo.

O que precisamos, então, para construir uma melhor relação com o nosso corpo?

Diria que uma boa autoestima demanda, de facto, uma maior consciência do estado fisiológico e das sensações físicas que vamos sentido, momento a momento. Podemos falar, então, em consciência interocetiva, que é a capacidade de notar e reconhecer os sinais do nosso corpo (bem como os pensamentos que estão associados a esses sinais). Esta consciência permite-nos reparar que partes do nosso corpo estão relaxadas e que partes estão tensas (quando, por exemplo, notamos a tensão na nossa face depois de uma reunião em que era esperado sorrirmos), reparar nas nossas necessidades básicas (como ter fome ou querer ir à casa de banho), reparar quais são as nossas vontades e desejos (por vezes, estamos tão focados no que devemos fazer que nem sabemos bem o que nos apetece fazer) e reparar quando os limites estão a ser ultrapassados. Apenas reparando, teremos a capacidade de responder da melhor forma ao que o nosso corpo precisa.

Outro processo que considero muito importante é a aceitação. No que diz respeito às sensações físicas do nosso corpo, aceitação significa dar espaço ao que estamos a sentir. Quando, por exemplo, depois de aprendermos a reconhecer e a notar as nossas emoções podemos, antes de as analisar ou resolver, apenas criar espaço para senti-las.
No entanto, a aceitação também se pode relacionar com características físicas do nosso corpo. Não temos de nos forçar a gostar de características nossas que não gostamos mas, podemos dar-lhes espaço para existirem sem autocrítica e julgamento. E isto é possível quando percebemos que essas características não têm de ser definidoras da nossa identidade — que se estende muito além dos defeitos que percecionamos em nós (e.g., não tenho de gostar do acne que crava a minha pele, mas posso compreender que o meu valor não estará, certamente, dependente dele).

Por fim, a compaixão. A intenção de nos acolhermos, principalmente quando nos sentimos mais vulneráveis — quando o nosso corpo está doente ou quando nos sentimos expostos e com vergonha. Esta postura permite-nos quebrar os ciclos de crítica e exigência a que nos submetemos tantas vezes.

Assim, mudanças no nosso corpo podem contribuir para a nossa autoestima, mas não são suficientes. Uma autoestima baseada somente na imagem é uma autoestima superficial, porque está dependente de algo que é mutável e variável ao longo do tempo.
Uma relação segura e saudável com o nosso corpo pede autocuidado, atenção e espaço para sensações desagradáveis, aceitação do imperfeito, presença e conexão com o que sentimos, e a vontade de acolher o que nos faz sofrer. E esta relação, como qualquer outra, pode ter momentos muito desafiante (principalmente para quem tenha experienciado situações traumáticas que envolvam vergonha com o corpo). Por isso, não é um caminho que se tenha de fazer sozinho. A terapia pode ajudar-nos a restabelecer esta relação de segurança e confiança com a casa onde habitamos todos os dias.
O objetivo passa, então, por deixarmos de nos instrumentalizar — perceber que aquilo que os outros poderão percecionar do nosso corpo não pode ser mais importante do que as suas vivências, saúde e bem-estar. Precisamos de despender menos tempo a notar aquilo que falta ao nosso corpo (ou o que tem em excesso), e passar a notar tudo o que ele já tem e a liberdade de escolha que nos traz. No fundo, precisamos de aprender a desvincular o nosso corpo de tantos “devias” e “convenções”, e libertá-lo para que possamos ser mais espontâneos e intencionais em resposta ao que ele sente.