Assinala-se este mês o Dia Mundial da Saúde.

Como podemos definir o conceito de saúde? O que significa ter saúde? O que significa deixar de ter saúde?

A Organização Mundial da Saúde define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”.

Mas como viver quando a saúde deixa de ser uma realidade e passa a ser um conceito distante da nossa rotina? Como lidar com não apenas a vivência de uma doença, como também com a ausência de um bem-estar físico, psicológico, espiritual e social? Como aceitar estar doente?

COMO LIDAR COM UM DIAGNÓSTICO DE CANCRO?

O cancro continua a ser, provavelmente, a patologia mais temida do mundo moderno. Não sendo apenas um fator de mortalidade, cobra uma pesada fatura de angústia e desespero, mesmo quando é potencialmente curável (Sousa, 2015; Pereira & Lopes 2005). A doença oncológica coloca vários desafios significativos ao doente, à sua família e cuidadores, assim como aos profissionais de saúde, ao longo do curso e processo da doença (OPP, 2018).

Um diagnóstico de doença oncológica é um acontecimento de vida stressante, exigindo uma resposta de ajustamento, com impacto nas diferentes áreas e domínios da vida de todos os envolvidos (OPP, 2018), nomeadamente a nível físico, social, laboral/financeiro, pessoal e familiar.

O impacto físico do cancro, associado à doença, aos tratamentos realizados e efeitos secundários inerentes, assim como a potenciais sequelas (transitórias/permanentes), é apenas uma das dimensões em que a doença pode assumir um peso enorme no funcionamento da pessoa a quem é diagnosticado. Sintomas como dor, sintomas gastrointestinais, afrontamentos, alteração da imagem corporal e maior dependência na realização das atividades de vida quotidiana, entre outros, podem implicar dificuldades no processo de adaptação ao diagnóstico, tratamentos e prognóstico.

Esta alteração na forma como o doente vivencia o quotidiano tem, muitas vezes, impacto na dimensão familiar e/ou conjugal, assumindo a família, com frequência, o papel de cuidadora. A necessidade de reorganização de papéis e rotinas, a mudança na dinâmica familiar e a dificuldade, muitas vezes, experienciada ao nível da comunicação com o aparecimento do fenómeno da conspiração do silêncio (o “elefante na sala”) contribuem para que esta dimensão seja uma das mais afetadas durante a doença.

Por outro lado, perante os efeitos decorrentes da doença e dos tratamentos, a doença pode condicionar as rotinas do doente e da família, contribuindo para uma maior inatividade e, consequentemente, um maior isolamento social. Por vezes, por dificuldade em lidar com a doença ou por desconhecimento, a rede social torna-se mais distante espoletando no doente uma sensação de abandono e de solidão. Amigos e família apresentam, por vezes, um sentimento de impotência perante a doença, sentindo-se incapazes de ajudar e de estar presentes. Dadas as dificuldades vivenciadas, o próprio doente acaba, muitas vezes, por se afastar de quem o rodeia.

A maior dependência do doente pode surgir também associada a uma ausência de capacidade para manter a rotina laboral o que implica uma diminuição acentuada do rendimento, numa fase em que as despesas aumentam, o que se assume como uma preocupação acrescida. A falta de segurança e de previsibilidade, a dificuldade em cumprir compromissos contratuais, o sentimento de inutilidade e, por vezes, a inflexibilidade do local de trabalho quanto a condições/horários aparecem como um sinal do impacto da mudança na rotina e na identidade.

Funcionando como uma disrupção no percurso de vida, abrupta e sem pré-aviso, a doença pode implicar uma reestruturação do projeto de vida, dos objetivos a curto, médio e longo prazo e uma mudança na forma como a pessoa perceciona a sua realidade. O doente, perante a imprevisibilidade do curso da doença, pode apresentar sintomatologia ansiosa e/ou depressiva, dificuldade de lidar com as limitações associadas aos tratamentos e a incerteza quanto ao futuro que contribuem para sentimentos de tristeza e angústia; o medo (medo da incerteza, imprevisibilidade, da morte e do sofrimento, das perdas, da dependência); a disrupção do projeto de vida, a perda da identidade (fim do “eu como era”); e o sofrimento existencial pelas perdas associadas. A necessidade de um novo olhar sobre o “eu”, os outros e a vida contribui para uma reflexão existencial/espiritual que se constitui, não raras vezes, como a dimensão em que é experienciada a maior mudança.

Apesar dos avanços da medicina oncológica na última década, nomeadamente em termos do conhecimento da biologia da doença e novas abordagens diagnósticas; de um conjunto de testes que fornecem informação sobre o prognóstico da doença, contribuindo para a tomada de decisão quanto aos protocolos terapêuticos a realizar; e de mudanças nas terapias primárias e adjuvantes, o cancro continua a ser associado a uma imagem que passa pelo sofrimento, estigma, culpabilidade, isolamento social e perda de sentido de vida.

1/3 dos doentes oncológicos apresentam distress significativo, extensível aos familiares e cuidadores, sendo que este diagnóstico é uma ameaça à integridade física e psicológica. Existe uma elevada prevalência de comorbilidades em doente oncológicos, ao nível da depressão (24%), ansiedade (30%) e distress (44%) (Cardoso et al., 2016).

O distress, enquanto sexto sinal vital, varia num continuum que vai da adaptação normal a situações de depressão, ansiedade ou múltiplas outras situações geradoras de sofrimento. A morbilidade psicológica e psiquiátrica é, assim, significativa e complexa ao longo de todas as fases da doença.

Um estudo recente da Liga Portuguesa Contra o Cancro (2022) revelou que 25–30% dos doentes apresentam sintomatologia clinicamente significativa de perturbação psicológica.

Mais de 50% manifestam sofrimento emocional significativo ou distress capaz de prejudicar a capacidade para lidar eficazmente com a doença, com sintomas físicos e efeitos secundários dos tratamentos. O estudo apontou também que os doentes e familiares reportam problemas e vivências semelhantes e experienciam níveis elevados de distress ao longo das diferentes fases da doença: 9 em cada 10 doentes revelam elevado sofrimento emocional.

No entanto, a literatura indica que muitos doentes ultrapassam o percurso de doença com capacidade de resiliência, resultando numa experiência de crescimento (crescimento pós-traumático).

QUAL O IMPACTO DA DOENÇA ONCOLÓGICA NAQUELES QUE CUIDAM?

Quando uma pessoa adoece com cancro, toda a família é envolvida no percurso de doença (Branco & Moreira, 2015). O impacto do cancro em toda a família tem sido comparado ao efeito de onda que uma pedra provoca quando lançada a um lago (Lewis, 2010; Blanchard, 1997). O cancro conduz a inúmeras crises consecutivas ao longo de todo o processo, desafiando as capacidades de adaptação da família (Branco & Moreira, 2015).

As famílias acompanham este percurso num duplo papel de cuidadores e potenciais “doentes”, sofrendo também as angústias inerentes às diferentes fases e, em simultâneo, assumindo tarefas e cuidados que as tornam num aliado indispensável das equipas terapêuticas.

Mas não é apenas a família que cuida, cabendo aos profissionais de saúde uma parte significativa da prestação de cuidados e, consequentemente, a gestão de inúmeros desafios pessoais e profissionais.

O distress dos cuidadores formais (profissionais de saúde) tem sido também uma área que merece um interesse e cuidado crescentes, devendo a humanização de cuidados aplicar-se também aos que cuidam. As equipas que lidam com estes doentes experienciam diversos desafios, nomeadamente a tomada constante de decisões importantes, o acompanhamento de terapêuticas agressivas e passíveis de efeitos secundários, a comunicação de más notícias, os turnos prolongados, a escassez de recursos, o confronto constante com sofrimento e morte e as expectativas irrealistas de alguns doentes e familiares. Existe, assim, uma maior probabilidade de desenvolvimento de burnout e fadiga por compaixão, dados corroborados pela literatura.

MAS NEM TODAS AS PESSOAS REAGEM DA MESMA FORMA A UM DIAGNÓSTICO DE CANCRO. O QUE AS DISTINGUE?

A vivência da doença é condicionada pela história única de cada pessoa, pela sua personalidade, pela fase do ciclo de vida em que se encontra e a sua rede de suporte, o que faz com que cada doente seja diferente de todos os outros. O cancro é “várias doenças”. O doente é “vários doentes”.

A adaptação à doença depende de múltiplos fatores: físicos, psicológicos, sociais, culturais, espirituais, familiares e da etapa de vida.

De acordo com a literatura, são diversos os fatores que podem afetar o processo de adaptação à doença oncológica, nomeadamente fatores internos (existência de características pessoais e interpessoais — dicotomia espírito de luto versus fatalismo-; qualidade e dinâmica das relações familiares e o suporte social percecionado como (in)suficiente; preferências quanto à informação recebida sobre o processo de doença; estilo de comunicação com outros significativos; a dimensão da espiritualidade / religião; a frequência, intensidade e gravidade de sintomas físicos; a idade; o nível socioeconómico; a existência de comorbilidades e/ou história pessoal ou familiar e de perturbação psicológica/psiquiátrica prévia) e fatores externos (integração na comunidade/família; recursos económicos e sociais)

A literatura indica que fatores como a espiritualidade, o suporte social, o acesso à informação, a comunicação adequada com os profissionais de saúde, a comunicação com a família e outros significativos, um estilo de vida saudável e a preservação do sentido de identidade podem contribuir para uma adaptação mais positiva à doença.

Por sua vez, a presença de constrangimentos sociais, a perceção de suporte social reduzido, a relutância em falar sobre a doença, a existência de níveis elevados de distress e história prévia de psicopatologia, e as dificuldades de comunicação (conspiração do silêncio) contribuem para dificuldades de adaptação.

DE QUE FORMA PODE A PSICOLOGIA AJUDAR NO PROCESSO DE ADAPTAÇÃO À DOENÇA?

A psico-oncologia nasceu como área sistematizada de conhecimento na segunda metade do século XX, quando a comunidade médica reconheceu que tanto o aparecimento como a evolução do cancro podem ser determinados, também, por fatores psicológicos, comportamentais e sociais e que esta doença é, por sua vez, responsável por um significativo sofrimento emocional e psicossocial no doente e na sua família.

A psico-oncologia compreende duas principais dimensões psiquiátricas e psicológicas do cancro. Por um lado, as vivências dos doentes e dos seus familiares ao longo do processo de doença, bem como o stress sentido pelos cuidadores formais; por outro lado, os fatores psicológicos, comportamentais e sociais que influenciam o risco, a deteção e a sobrevida da doença oncológica.

QUAIS AS ÁREAS PRINCIPAIS DE ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO EM ONCOLOGIA?

- Psicoeducação (disponibilização de informação clara e ajustada às necessidades e capacidades do doente e da família sobre o processo de doença);

- Contribuição para uma maior humanização na prestação de cuidados;

- Estudo e intervenção nas respostas psicológicas dos doentes, famílias, cuidadores e profissionais de saúde, em todas as fases da doença;

- Prevenção/Diminuição do distress emocional do doente oncológico, dos familiares/cuidadores e dos profissionais de saúde;‍

- Promoção da qualidade de vida do doente oncológico, dos familiares/cuidadores e dos profissionais de saúde;‍

- Promoção das competências pessoais/profissionais para lidar com o processo de doença, prevenindo o desenvolvimento de perturbações psicológicas;‍

- Facilitação do processo de luto antecipatório/preparatório e luto;

- Intervenção ao nível da prevenção do Burnout dos cuidadores (formais/informais);‍

- Facilitação da comunicação entre o doente, a família/cuidadores e os profissionais de saúde;‍

- Integração da doença na narrativa de vida.

QUE BENEFÍCIOS RESULTAM DA INTERVENÇÃO PSICO-ONCOLÓGICA?

A intervenção psico-oncológica junto do doente oncológico considera-o como “um ser portador de uma doença” e não como “um ser doente”, entendendo-o como um ser multidimensional a quem devem ser reconhecidas e valorizadas todas as dimensões.

A literatura e a evidência empírica revelam que a Intervenção Psico-Oncológica assume como principais benefícios:

- A melhoria do funcionamento psicológico/emocional e biológico com a prevenção e/ou diminuição da sintomatologia psicológica;

- A diminuição dos efeitos secundários associados aos tratamentos e a melhoria da capacidade de resposta do sistema imunitário;

- A promoção da qualidade de vida em todas as fases da doença;

- A promoção da capacidade de adaptação à doença, ao diagnóstico|prognóstico e aos efeitos secundários dos tratamentos;

- A facilitação da reconciliação da pessoa com a sua própria história;

- A promoção de um estilo de vida saudável e a reintegração na vida ativa pois a sobrevivência é mais do que “um escape à morte”.

Focar na pessoa mais do que na doença é, sem dúvida, o que define uma prestação de cuidados humanizada, centrada nas necessidades da pessoa e de quem a rodeia, procurando a promoção da saúde, da qualidade de vida e da dignidade humana em todas as fases deste caminho.

“You treat a disease, you win, you lose. You treat a person, I guarantee you, you’ll win, no matter what the outcome.” (Patch Adams)

QUE DESAFIOS FUTUROS?

Os doentes e as famílias esperam dos profissionais de saúde cuidados humanizados que lhes permitam vencer a doença, mas também manter a melhor qualidade de vida possível e, sobretudo, a sua integridade enquanto pessoas. A comunicação entre a equipa e o doente molda a vivência da doença com repercussões na sua evolução.

Diversas orientações de apoio psicossocial têm demonstrado múltiplos benefícios ao nível da qualidade de vida e do bem-estar, mas também na adesão terapêutica, no curso da doença e na própria sobrevida. A aposta tem de ser crescente numa profunda e indissociável tradição humanizada do cuidar.